Relato detalhado da viagem dos meussonhos – Atacama/CHILE
02/01/2012 a 19/01/2012
Introdução
Sempre gostei de motos. Lembro que aos 15 anos gastava minha mesada inteira para andar durante quinze minutos demoto. Tinha um pessoal que alugava as chamadas cinquentinha, que eram umasHonda pequenas, pretas, em frente ao Colégio Batista Brasileiro, no bairro dePerdizes, em São Paulo. Óbvio que ia escondido, tamanho o receio dos meus paisem relação a esse tipo de veículo. Preteria tudo o que podia fazer com odinheiro, para andar um pouquinho de moto. Essa era definitivamente minhaopção. Os locadores cobravam adiantado e lá se ía minha mesadinha. Davam a motoligada com uma luz verde no painel e sem nada explicar voltavam para o próximoda fila. Sem capacete e sem instruções, tínhamos de nos virar para sair comaquela bicicleta mais pesada pelas ruas da cidade. Até entender o funcionamentodo câmbio de quatro marchas sequenciais, descobrir onde ficava cada breque ecomo acionava a embreagem, com certeza atrapalhávamos o trânsito e nos colocavaem situação de risco. Ao final de doze minutos era hora de programar a volta eesperar o próximo mês. Em 1982 comprei minha primeira moto, uma CB400cc daHonda que mantive por quase dois anos. Depois tive uma trail 350 - com a qualtive um acidente quando fazia uma trilha na lama, ocasião em que tive deretirar o baço -, uma Agrale 200 e, por último, uma XLX 250, ano 1992, daHonda, que está na minha garagem até hoje e com apenas 21 mil quilômetros.
A ideia
Há muitos anos estava passando poruma pequena cidade do interior de Minas Gerais, quando vi estacionada no hotelque visitava uma V-Strom 1000 cc, vinho, e um casal que contava animado queestava se preparando para ir ao Chile de moto. Tive na hora aquela sensação deinveja boa e pensei comigo o quanto deveria ser maravilhosa a aventura queaqueles jovens estavam programando. Isso nunca me saiu da cabeça. Usava minhaXLX 250 para pequenos passeios e me satifazia com ela. Numa dessas viagensconvidei o Alexandre, meu colega de trabalho que além de ser fera na área deinformática, também adora esses veículos de duas rodas. Na volta ele me disseque eu não combinava com uma 250 e sugeriu pensar numa 600cc. Como um dos meustrabalhos é no centro da cidade, fui no mesmo dia, na hora do almoço, dar umaolhada nas tais 600 que o Alexandre falava. Na primeira loja que entrei acheiuma Freewind 650 da Suzuki e, digamos, foi amor à primeira vista. Não queriaoutra moto, já que o estilo era exatamente o que procurava. A Freewind é umamoto que foi comercializada entre 1997 e 2003 no Brasil e foi criada justamentepara concorrer com a BMW 650 que era o must na época. Como BMW é BMW e aFreewind chegava aqui muito cara, até porque era construída com excelente nívelde acabamento, não conseguiu dobrar a marca alemã. Deixaram de importar e, narealidade, restam poucas em muito bom estado. O bom é que as peças sãoencontradas em qualquer lugar e, as que não são, demoram poucos dias parachegar. Daí comecei a guardar dinheiro para ver se um dia conseguiria comprarum exemplar igual ao da loja. Aquela já estava meio rodada e mal rodada. Eraano 2000 e pediam R$ 16.000,00, um pouco acima do que realmente valia. Comeceia procurar noites e mais noites na internet até que, muitos meses depois, acheiaquilo que literalmente garimpava. Estava numa revenda de Curitiba, tinhaapenas 8 mil quilômetros, ano e modelo 2003, portanto a última geração que foicomercializada aqui no Brasil, por R$ 16.000,00. Como foram importadas apenas340 unidades para o Brasil, é um veículo que não tem muito mercado e tem umagrande vantagem, os amigos do alheio não querem furtar. Com as economias quefiz e mais um pouco que já tinha era hora de descer a Curitiba e ver se oestado real da moto conferia com as imagens disponibilizadas pelo site darevenda. Muito empolgado, convidei meu filho, o Dudu, para ir junto, e eleconcordou sem pestanejar. Viajamos pela companhia Azul, saindo de Viracopos, aomódico preço de R$ 45,00 por passagem. Levamos capacete, mochila, roupa impermeáveis,luvas e chegamos debaixo da maior chuva no aeroporto local. Acho que gasteimais de táxi do que uma das passagens aéreas. Conheci o Renato, antigo dono dazoiúda - é assim que ela é conhecida no meio motociclístico -, muito simpático,que guardou a moto para mim durante anos. De fato parecia zero quilômetro. Nãoera exatamente o azul que procurava, mas pelo estado geral, fechei o negócio.Transferi o montante através de cheque administrativo para a conta do Renato,que também era correntista do Itaú, e me foram dadas as chaves, documentos e oaperto de mão pela transação realizada. Chovia a cântaros e meu filho, brancocomo a neve, tentava me dizer que havia horas que não comia nada e que estavamorrendo de fome. Saímos debaixo de chuva e a moto apagou no primeiro semáforo,aliás, no sul chamam de sinaleiro. O Dudu vestia roupas próprias para chuva,mas eu, pela excitação do momento, estava só de jeans, camiseta e tênis. Nãoprecisa dizer como fiquei não? A bateria era antiga e não conseguiu acumularcarga suficiente para nova partida. Fomos empurrando a moto pesada debaixo dechuva, meu filho com cara de secar pimenteira e no trânsito de Curitiba não é enunca foi um primor; enfim, estávamos lá naquela situação e eu, no meu íntimo,feliz da vida – e ainda sem fome...!!!! – Achei uma loja de motos que tinha umautoelétrico ao lado. Enquanto instalava um bauleto maior para acomodar melhornossa bagagem para a volta e o eletricista dava uma carga rápida na bateria,levei o Dudu para comer algo numa padaria defronte. E não parava de chover. Como novo baú e um pouquinho a mais de energia, seguimos para um hotel para tomarbanho e sair para jantar. No dia seguinte, tudo pronto para voltar a São Paulo,nada da moto ligar. Fizemos hora no Centro Cívico, que é lindo, cheio de aves,lagos e recantos acolhedores, aguardando o horário de abertura do comércio paracomprar uma nova bateria. Não foi cara e está excelente até hoje. Viemos paraSão Paulo e depois disso, raramente meu filho pula na garupa para um passeiocomigo, tamanho o sofrimento que foi ficar com suas longas pernas encolhidaspor 400 quilômetros e durante muitas horas de viagem.
Passeios perto de São Paulo
Tendo feito um upgrade de 250 cc para 650 cc, era hora de desfrutar um pouco daqueleinvestimento. Saía com amigos nos fins de semana e tudo era pretexto paradescer com as chaves da moto, ligar e zarpar. Fui em abril de 2011 a um eventobárbaro em São Lourenço, MG, Megacycle, onde 25 mil motociclistas de todo opaís se encontram anualmente, cuja festa contava com vários ambientes para sefazer test drive, embalada por músicade excelente qualidade, além de exposições e muitos aficcionados pormotocicletas circulando pela cidade e arredores. Um belo dia vem o Paulo, umamigo de um dos meus vínculos, com a ideia de ir para o Chile de moto. Levei asério a proposta e começamos a fazer uma reflexão do que seria essa viagem. Convoqueios primeiros sete candidatos para um café da manhã em casa, sendo que meesforcei para caprichar ao máximo para que a reunião corresse da melhor formapossível. Saí bem cedo para providenciar as coisas e a Lúcia, minha mulher,também já estava de pé dando a maior força para deixar a casa bonita e oambiente acolhedor, para aquele primeiro momento que tinha a ver com a viagemdos sonhos. Dos sete apenas dois compareceram, mas isto não comprometeu oencontro. Lemos um pouco sobre o tema, abrimos uns mapas e distribuímos tarefaspara buscar o maior número de informações possíveis para um novo encontro. Maspor obra do destino, cada um teve sua real justificativa para abandonar a ideiade viajar juntos neste ano de 2012. Decidi portanto ir sozinho, sob osauspícios da Lúcia e da minha mãe. Mas a ideia já estava introjetada e nãohavia mais como demovê-la. Fui comprando as malas, instalei cavalete centralpara facilitar a moto manter-se em pé, além de facilitar a lubrificação diáriada corrente, instalei protetores de mão para proteger do frio e de insetospresentes nas estradas do sul, melhorei a iluminação ao adotar lâmpadas H7,comprei penus novos, etc., etc. e etc.... Conversando com o Nuno Couceiro, meuamigo de longa data, que inclusive recebeu o status de padrinho da expedição,ele disse que um amigo que havia trabalhado com ele na GM anos atrás estavadecidido fazer esse percurso e daí ele acabou me apresentando o Nairo Watson,em outubro de 2011 que, por sua vez, aproximou o casal Ricardo Sette e MilenaGuiotti ao grupo um mês depois em Joanópolis. Marcamos a data da saída nesseencontro e fizemos um bota fora em casa para marcar o início da viagem. A ideiaera fazer uma espécie de briefing, para combinar alguns detalhes da viagem e aconvivência dessas pessoas que até então mal se conheciam. Já tinha atérealizado uma pequena viagem com o Nairo para ver se dava liga, e deu. Mas como casal recém aproximado, foi apenas o encontro de Joanópolis e o bota fora emcasa, sendo que foi nesta viagem a primeira vez pilotamos juntos. Conseguimosbaixar os filmes do Wlamir que havia feito essa viagem em setembro último, quefoi precioso, pois pudemos nos preparar melhor analisando os detalhes do blogdele em conjunto com os vídeos. Além do mais, o Wlamir nos passou vários emailse telefonemas com recomendações de fato importantes.
A saída e os equipamentos.
De fato nossa viagem teve proporçõescontinentais. Saímos de pertinho do oceano atlântico e fomos de maneira ousadatocar as águas frias e escuras do pacífico. Estivemos muito perto da Bolívia,Peru e, mais tarde, do Uruguai. Teria dado tempo de estar nos seis países seesticássemos quatro ou cinco dias mais. No dia da saída, quase não dormi, tocouo despertador e enrolei um pouquinho mais na cama para guardar um naco a maisde energia para o grande feito. Tomei banho pensando no quanto planejamos,quantas idas e vindas à procura do melhor equipamento, quantas providências queforam tomadas a partir do extenso check list e quanto prazer circulou nessafase de preparação. Havia chegado a hora. Um breve café da manhã e desci para agaragem a fim de instalar as malas e partir. A Lúcia e o Dudu, minha mulher emeu filho, tiveram a generosidade de levantar e descer comigo, não sei se eraprá ter certeza de que eu realmente iria ou se já estavam começando a sentir osefeitos da efêmera separação. O azul da moto reluzia, as malas impecavelmentelimpas, jaqueta, capacete e botas novas, tudo ajustado e no devido lugar. Vieramos abraços e beijos de despedida, só nós três na garagem, fotos, promessas decuidado, aliás, de muito cuidado e de que faria contato assim que fossepossível. Não fiz plano de telefonia celular e o combinado é que o contatoseria feito quando encontrasse uma rede wifi. Nunca havia pilotado como manda ofigurino, devidamente equipado com luvas, botas, calça de cordura, jaqueta comtodas as proteções, protetor de coluna, capacete articulado, pois sempre tive opéssimo costume de montar numa moto usando apenas jeans, camiseta e tênis.Confesso que é mais gostoso assim, mas para uma viagem muito longa e cheia de situaçõesreais de risco, estar protegido também dá um certo conforto, sobretudo para afamília. O capacete, um LS2, ganhei da Lúcia de presente de natal. Ela queriaque o maridão viajasse mais confortável e que o frio não entrasse nas frestasdo outro velho que uso há anos. Eu resisti, pois seria um gasto a mais, mas elafoi decidida e me fez escolher o presente. É leve, preto fosco, que risca só deolhar, mas que articula o maxilar, garantindo um conforto extra, pois permite aventilação, principalmente quando se trafega em velocidades baixas e nas viasquentes das inúmeras cidades e vilarejos pelos quais passamos. Por outro ladoquase fui multado no Paraná por andar no melhor estilo RoboCop. O bacana docapacete é uma tecla vermelha que, acionada com a mão esquerda, oferece umalente escura para os dias de extrema claridade, o que foi de fato providencial,pois os dias foram de céu azul e sol intenso. Mesmo com névoa ou com um poucode neblina, baixar essa lente, melhora sensivelmente a visão. As entradas esaídas de ar não funcionaram, apesar de tentar ver se fazia diferença em todasas posições possíveis dos pequenos comandos de plástico. Além dos adesivosreflexivos obrigatórios, colei um estampando meu grupo sanguíneo, O+ que,aliás, coincidia com o da Milena. A Lúcia tinha razão, gostei muito do meu presentede natal. Protetor de coluna nunca tinha usado. Quando fui comprar, todos queexperimentava, dava a mesma sensação de ser protagonista de filme de tartarugaNinja. Achava que era própria para motos de velocidade, mas ao assistir a umvídeo no Youtube sobre o modo com que o equipamento protege contra lesões dacoluna, rendi-me prontamente. A jaqueta é impermeável e tem proteção nas costase cotovelos para o caso de uma queda eventual. Tem um forro extremamente macioe removível que dá praticidade ao equipamento, pois pode ser usado tanto nofrio como no calor. Além do mais é cheio de zíperes e bolsos que permitemguardar com segurança o celular, fones de ouvido, que aliás não usei, moedaspara os inúmeros pedágios, balas, doces que formigões como eu não dispensam, e tudomais que se queira. O bom é que no caso de chuva, não é preciso parar, já que omesmo é totalmente impermeável e dispensa as paradas que muitas vezes sãomanobras consideradas arriscadas. A calça, de cordura preta da Revolt, compradadois dias antes da viagem, proporcionou também um conforto extra pois, assimcomo a jaqueta, tem forro removível, proteção e vários bolsos. O difícil ésaber onde encontrar o que se quer no início da viagem. Depois de um tempo issose automatiza. Dá até para esconder um pouco do dinheiro, que é recomendadolevar um pouco em espécie. É também impermeável e se chover basta continuarpilotando. O cinto é super criativo e ajustado através de velcro, o quefacilita nas paradas fisiológicas. Por baixo, entre o underware e a calça, useium porta dólar, desses comprados nos lepostiches da vida, de tecido cor de pele, antialérgico e com forro paraabsorver o suor. Ali viajou um pouco de dólar e pesos argentinos. Os chilenos,troquei após entrar naquele país. As botas novas são da marca Modeo,extremamente macias e com umas minúsculas saliências na palmilha, que dizem queé para massagear os pés. Um tanto duvidoso, mas com tato confortável. Exigia ouso de polainas especiais para impermeabilizá-las no caso de chuva. Compreiluvas da marca Tutto, que embora não sejam impermeáveis, oferecem todos os movimentosnecessários à arte de pilotar motocicletas. Tem proteção também contra queda esão fáceis de ser removidas, o que era necessário nas várias paradas para tirarfotos e nos pedágios pagos ao longo das estradas. Parar no pedágio, tirar aluva com a outra mão que também está de luva, abrir o zíper do bolso da calça,pegar a carteira, tirar o dinheiro, pagar, pegar o tíquete, guardar as moedasde troco, botar a carteira no bolso da calça, fechar o zíper para não correr orisco de perder e pôr a luva de volta, com a outra mão que ainda continua deluva, acaba sendo uma rotina que requer destreza e treinamento contínuos. Àsvezes as moedas caem no chão e dá para perceber claramente a intolerância dequem está no carro ou caminhão de trás, aguardando o fim da novela. Surgiu umagrande ideia, a de constituir um caixa para pagar pedágios. Depositávamos dequando em quando e a Milena se encarregava de efetuar os pagamentos quando osmesmo eram exigidos. Tinha pedágio tipo sem parar e sem pagar. Outros erampagos, mas uma ninharia. Às vezes apareciam uns carésimos e outros que nãotinham instruções sobre como proceder. Tínhamos de adivinhar se passava aolado, ou junto com os carros, uma verdadeira bagunça. Voltando às luvas, estas foramfeitas para ficarem juntas ao longo de toda uma vida. Mas por obra do destino,ao tirar uma única foto das antenas parabólicas de um grande observatório nacosta do pacífico, deixei cair a da mão direita, vindo a perceber centenas dequilômetros depois. Observei as mãos nas manoplas e vi que uma estava preta e aoutra branca, Foi quando deduzi que havia deixado uma delas para trás,invertendo a lógica da monogamia das mesmas. Não tenho coragem de jogar fora aque restou. Ela está aqui em cima da mesa de casa, perto do Atlântico enquantoa outra, lá longe, ao lado do pacífico. Outra coisa muito recomendada foi asegunda pele. Trata-se de blusa, calça e luva macias que são vestidasdiretamente sobre a pele, antes da calça de cordura, jaqueta e luvas. Protegemcontra o frio intenso, mas confesso, que não usei. Os forros da calça e dajaqueta foram suficientes para atravessar algumas horas de frio que chegou adez graus celsius negativos. Imagino que para uma viagem à Patagônia essavestimenta seja absolutamente necessária, mas para este trecho, para mim nãofoi. Mas como sou meio fora de padrão, minha opinião não serve de referênciapara ninguém. A garupa toda encapotada, namorada de um motociclista, quasemorreu de frio e forçou a dupla a parar numa hospedaria, no alto da cordilheirados Andes. A sensação de frio é muito pessoal. Tudo o que levei foiacondicionado em uma mala própria para motociclismo que comprei há meses, masque nunca havia usado. Tem um tipo de valise que acopla por meio de seisfivelas, proporcionando 52 litros de volume. Além dela, usei o espaço dobauleto traseiro, que oferece mais 42 litros de espaço. Considerando que leveium monte de coisas só para um passeio continental, o espaço ficou um pouco comprometidopara o que realmente deveria ter ido. Levei calça de sarja para uma ocasiãomais formal; agora morro de rir disso, duas calças jeans, quando apenas uma erasuficiente, várias cuecas e meias num saco branco que fazia volume, mas nãoforam sequer usadas. Era mais fácil lavar durante o banho e alternar com as queforam previamente lavadas. Camisetas de dryfit eram excelentes, pois se lavadas ànoite e torcidas suavemente numa toalha, estavam prontas e cheirosas para seremreutilizadas na manhã seguinte. Levei uma pequena necessaire com objetos de usopessoal, além de remédios para isto e para aquilo, os quais graças ao bom Deus,não precisei usar. A grande dica foi dada pela Lúcia, de levar lençosumidecidos, que foram super úteis. Limpava viseira, bota, suor, refrescava testa,careca e pescoço e era uma mão na roda nos banheiros públicos. Levei coisas quejamais supus não usar. Era uma pesada trava de disco com alarme da marca Xena etrava de cabo de aço para capacete. Na prática estas coisas não são usadas egasta-se gasolina para levar uma verdadeira tralha, em princípio inútil, pormilhares de quilômetros. Levei também um pequeno compressor de ar que garantiuque rodássemos após o pneu de uma das motos furar. Se não tivesse furado, seriaoutro peso morto que apenas foi passear no deserto. Por fim utilizei umaalmofada Airhawk 2 que ganhei da tia Dulce que, como a Lúcia, queria igualmenteme ver confortável. Essa almofada é presa no banco da moto através de tiras comfechos como os de soutien, e pode ser calibrada com ar por uma válvula com aprópria boca. Tem várias células que funcionam como compartimentos de ar, compequenos dutos de comunicação que asseguram firmeza e maciez. É extremamentecara, mas oferece conforto na mesma proporção.
O encontro
Saí de casa parecendo um cavaleiromedieval com aquela “armadura” recentemente adquirida e ainda sobre a tal almofadinhaque pensava que teria de encher ao máximo. A coisa estava um tanto esquisita.Sou alto, mas mesmo assim, custava a encontrar o chão nas paradas obrigatórias.Já tinha testado a jaqueta e a bota, outra vez experimentei a almofadinha, noutrasomente as luvas novas, mas naquele momento era a primeira vez que usava tudo issojunto. Ao ganhar a rua e despedir do porteiro, foi inevitável deixar de pensarse aquela era a última vez que saia de casa. Pudera, fazer uma viagem dessas decarro já é uma grande aventura, mas tendo de equilibrar tudo aquilo, o tempotodo, sob pena de encontrar o chão, seria uma responsabilidade a mais. Combinamosde nos encontrar no posto Graal no início da Castelo Branco, às 07h30 parasairmos às 8h00, já que teríamos de percorrer 631 km entre São Paulo e Maringá.Cheguei ligeiramente atrasado, mas já tinha tomado o café da manhã e estavapronto para sair. Portanto não atrasei o grupo quanto ao horário da saída.Encontrei as motos tão ou mais carregadas do que a minha e foi uma festa esseprimeiro encontro. Foi a certeza de que ninguém tinha arregado. Meus amigos doSindhosp, um dos meus vínculos, que por diversas razões não puderam participardesse longo passeio, pretendiam nos acompanhar pelo menos até Ourinhos, cercade 400 quilômetros da capital. Como saímos no dia 02 de janeiro, dia útil,tiveram de desistir do feito. Há vários tipos de motocicletas e várias tribos compostaspor elas e seus donos. Têm as esportivas e as superesportivas, categorias estasvoltadas à alta velocidade em asfalto de excelente qualidade. Chegam facilmenteaos 250 km/h ou mais. Já a categoria Custom, que tem como ícone as HarlleyDavidson, protagonizam filmes americanos e estão presentes nos bares e pontosde encontro das grandes cidades. São motos brilhantes e estilosas. Têm astrial, trail, motard, entre outras categorias mais. A nossa está situada nonicho Touring ou Maxitrail ou ainda Funbike. São motos que encaram asfalto eterra e que proporcionam conforto e segurança, sobretudo em viagens de longoalcance. Minha moto, uma Suzuki Freewind azul, 650 cc, com 47 cavalos depotência, ano 2003, é nova, mas a mais antiga das três. Usa carburador e estáregulada para utilizar a gasolina que todos nós conhecemos. O casal RicardoS(Ricardo Sette) e Milena utilizaram uma Kawasaky Versys Tourer 650 cc, com 64cavalos de potência, ano 2011 com quase 20 mil km já rodados – comprou zero –e, por fim, o Nairo que viajou com uma Triumph Tiger 2006 prata, 955 cc e com104 cavalos. As duas últimas contam com sistema de injeção eletrônica que seadaptam à altitude e ao tipo de combustível utilizado, otimizandoeletronicamente seu rendimento. A minha é de outra geração e isto fica evidenteno comparativo entre as três. No entanto, são máquinas que conseguem andar muitobem juntas, dentro de uma proposta de viagem como foi a nossa. Por outro ladogarantiram conforto, excepcional segurança e muito prazer, cada uma com suasaptidões, vantagens e desvantagens. Os meninos, assim os chamava até por ser omenos novo de todos, foram tomar café no Graal enquanto eu que já havia tomadoo meu em casa, tomava agora conta das motos, cheias de pertences e de documentosimportantes. É impressionante como as três juntas chamavam a atenção daspessoas que nos viam e que queriam tirar foto delas e mesmo conosco. Amotocicleta remete aos tempos em que os deslocamentos das pessoas eram feitos acavalo ou mesmo em lombo de burro. É um semovente melhorado e, digamos, maistecnológico. Mas se monta como os antepassados montavam aqueles animais. Assimque os meninos apareceram, deu-se início ao nosso grande sonho. Era hora deligar os motores e ver quem saía primeiro.
A saída
O casal Ricardo e Milena buscaram asaída do Graal, o Nairo em seguida e, por fim eu. Saí por último não sei seporque estava com a moto menos potente, sei lá...!!! Era a primeira vez que osquatro andavam juntos de moto e eu sabia que iríamos achar um jeito dissoacontecer. Pude observar nos primeiros quilômetros que o Ricardo Sette gostavade andar na frente e que o Nairo preferia ficar por último. Conversamos numadas paradas sobre essas preferências e o Nairo disse que sente que está numgrupo de motos quando as vê, justificando sua vontade de ficar acompanhando ocomboio. Essa é a posição do limpa-trilho, no jargão de muitos motoclubes. Éaquele que dá apoio e que está pronto para ajudar quem estiver necessitando deajuda. É uma posição de destaque e quem a ocupa está abrindo mão de chegarantes nos lugares, de ver primeiro as paisagens magníficas que a estradaoferece, enfim, é alguém experiente e absolutamente solidário. Está ali decerta forma para cuidar das pessoas e dar segurança ao grupo. Manteve-se dessaforma quase que o tempo integral da viagem. A partir daí eu ficava no meio, mascom muita vontade de puxar o trio em algumas situações. Mas não queria que essavontade pudesse parecer que estava disputando um lugar privilegiado. Ao longodo percurso eu ia revezando com o RicardoS a dianteira, o que acontecia de modoespontâneo. Como 50% do grupo era formado de Ricardos, convencionamos escreverRicardoS para Ricardo Sette e RicardoM para mim. Passamos por Sorocaba, maispara frente avistamos a entrada para Águas de Santa Bárbara, Ourinhos eseguimos rumo a Londrina chegando ao final do dia em Maringá. Enfrentamos umpouco de chuva, mas nada que comprometesse o desempenho e a segurança. Foramapenas 20 minutos de chuva leve. Encontramos logo na entrada da cidade um hotelque foi, sem dúvida, o melhor de toda a viagem. Hotel novo, piscina muitolimpa, restaurante honesto e aposento bastante confortável, tudo a preço justo.O nome era Hotel Thomasi. Claro que o casal ficaria no mesmo quarto, mas oNairo e eu tivemos de decidir se ficaríamos em quarto individual ou se era maisadequado dividir. Foi assim que optamos, aliás em todas as hospedagens queficamos. Já fui logo dizendo que roncava e que se o incomodasse, que era parame acordar. Devo ter roncado a noite toda e o coitado do Nairo provavelmente olhandopara o teto. Com muito jeito ele me disse que eu roncava um pouquinho e que porisso ele não dormiu direito. Mas eu contava com um grande aliado, o cansaço.Nos dias que se seguiam, rodando em média quase 600 km por dia, sabia que, ànoite, o Nairo iria prestar gradativamente menos atenção a eles. Emboracansado, dediquei-me a postar algumas linhas no facebook, a pedido da família ede alguns amigos. Acho meio invasivo colocar detalhes do que estou fazendo, maspercebi que houve repercussão positiva e a cada dia tentava caprichar um poucomais a minha experiência e daquele grupo que começava a dar sinais deamadurecimento e de que tinha encontrado um bom modus vivendi. Deitado e com as luzes já apagadas, pensava noquanto seria gostoso o dia seguinte, que tinha como destino Foz do Iguaçu. Iniciavauma rotina que se seguiu em quase todos os 17 dias das nossas férias que erachegar prontos ao café da manhã no horário pré-combinado, descer com as malas,bauletos, mochilas, alforges, jaquetas, capacetes e tudo mais, acertar ascontas, lubrificar as correntes, montar e ajustar as bagagens nas motos, fazero suprimento de caixa para o pagamento de pedágios, encher os camel back com água mineral, posicionaro GPS para o próximo destino, abastecer se necessário e iniciar o percursoprevisto para aquele dia. Duas das motos tinham cavalete central, quefacilitava o procedimento de lubrificar correntes e, a última, precisava sermeio que tombada para que o dono pudesse fazê-lo. Era um momento dedescontração e de inúmeras piadas. Aliás, este bom humor permeou quase toda aviagem. Eu disse quase, pois tinha uma alguém que se não tomasse café damanhã.......!!!!!! Assim que deixamos Maringá, pensei que este dia seriamoleza, pois a meta era de apenas 411 quilômetros. A do dia anterior foi de631. Equivoquei-me. Foi um dia em que os quilômetros custavam a passar. Oestado do Paraná tem muitas plantações, tráfego intenso de caminhões e excessode insetos que ficavam pregados no parabrisas e até no capacete. Quando deram adica de instalar um parabrisas mais alto, lembrei do quanto foi bom. Tudo o quegrudou na bolha teria grudado literalmente em mim. Bolha alta faz toda adiferença numa viagem como a nossa. Não sei porque, mas a velocidade média foisubindo já mais perto de Foz do Iguaçu e meu velocímetro apontava velocidadespróximas a 160 km/h e meus companheiros à frente, já que seus motores tinhambem mais potência. Acho que por uns momentos perdemos o juízo e a compostura. Combinamosde nos comportar melhor, pois, no dia seguinte estaríamos trafegando naArgentina e não conhecíamos os procedimentos de lá. Até por uma questão desegurança, nos dias que se seguiram, as velocidades ficaram oscilando entre 110e 130 km/h. É uma boa velocidade para se viajar e com certeza traz maissegurança. Pegamos um hotel simples em Foz e imediatamente contratamos uma Vanpara nos levar às lojinhas do Paraguai. Ao preço de R$ 25,00 por pessoa, o guianos deu dicas valiosas de onde encontrar produtos de boa procedência. Ali apoucos metros do Brasil, já dava para ver a maneira como as pessoas dirigiam,como não havia respeito aos pedestres, motos com várias pessoas sem capacete,um verdadeira confusão. Descemos por umas escadas escuras dentro de uma galeriaà procura de uma loja que vende produtos para motociclistas, mas chegamos tardee a maioria das lojas já havia baixado as portas. Comprei apenas um perfumepara do Dudu, para a Lúcia e um para mim. O bom de viajar de moto é que oespaço é reduzido e não dá para ficar comprando coisas. Entre uma loja e outracomprei chipas paraguaias que meus amigos não conheciam. Sentamos numaescadaria para saborear aquele quitute delicioso. Chipa é uma espécie de pão dequeijo e que leva erva doce em sua composição. É simplesmente uma delícia. Devolta ao Brasil, tomamos outra cervejinha na piscina que estava com a água maispara o verde do que para o azul. O calor daquela cidade era um dos maiores quejá havia experimentado em toda a minha vida. Chegando ao quarto percebi que alinão estava minha jaqueta que continha dólares e reais, em espécie além do meucelular. Preocupado desci no estacionamento e achei o agasalho em cima de umadas motos, graças a Deus. Depois do banho fomos jantar numa cantina italianadefronte ao hotel e lá havia gente feliz e som ao vivo, com direito a panelaçodos garçons no ritmo da música. Já no hotel o Nairo já não se preocupava maiscom meus roncos. Eu morria de calor e não queria ligar o condicionador de arpara não atrapalhar meu companheiro de quarto. Peguei o colchão e coloquei aolado da janela de uma pequena varanda que havia no quarto e comecei a pensarnos mil quilômetros que já tínhamos cumprido e nos 7.600 que ainda restavam. Alua fazia o quarto brilhar e a temperatura ia caindo, para minha sorte. Deitadono colchão no chão pude observar uma nojenta barata escura e asquerosa que nãosabia se saía do quarto pela fresta da porta ou se lá ficaria para me dartrabalho. Peguei a tal bota Modeo e a acertei em cheio, tamanho o nojo queaquela criatura provocava. O Nairo levantou a cabeça com o barulho e nãoentendeu o que estava acontecendo. Expliquei. O mais engraçado que no diaseguinte não se lembrava do que tinha acontecido. Enfim, chegamos ao extremo doBrasil e, no dia seguinte, uma sucessão de novas experiências nos aguardava.
Entrada na Argentina
Saímos do hotel da barata eprocuramos pela ruta 12 que nos levaria a Posadas, Corrientes e, atravessandouma ponte suntuosa, Resistência. Chegamos à aduana e percebi que havia um mínimode organização. Por outro lado a burocracia para entrar no país é grande. Nãose entra na Argentina sem a cédula de identidade ou passaporte, além dosdocumentos do veículo. Preenche-se um formulário de entrada, declarando bens,motivo da viagem e se vai de avião, carro, moto ou outro meio de transporte.Levamos a carta verde que é um seguro de responsabilidade civil obrigatóriopara que se entre com o próprio veículo naquele país. Quem não providenciouantes da viagem ainda resta a possibilidade de adquirir tal documento ao ladoda aduana. Não sei se por lá é mais caro e quanto tempo demora para serexpedido. O nosso foi tirado em São Paulo a um custo de R$ 222,40 com coberturana Argentina, Chile e Uruguai. O calor se mostrava presente e a fila andava umpouquinho e parava muito. Ficávamos aguardando esse anda e para no sol e comjaqueta, calça de cordura, bota, luva e capacete. Se tirasse um dessesequipamentos o sol queimava ainda mais. Deu para entender porque os árabes usamaquela vestimenta escura em cima dos camelos no deserto do Saara, justamentepara se protegerem dos efeitos do sol escaldante. De certa forma tambémficávamos protegidos, mas não dava para negar o sofrimento que era intenso. Sãoos momentos espinhosos de quem opta por viajar de moto. De carro tudo éprevisível, se está calor, ar condicionado. Se chove, tem teto e limpador deparabrisas. Se vem o frio, ar quente. De moto estamos literalmente no tempo, àmercê da própria sorte, mas é indescritível a sensação de viajar assim. A mobilidadeda moto é muito maior, a segurança ativa, também. Ultrapassar é muito maisfácil dado ao torque dos motores que respondem prontamente à menor torcida decabo do acelerador. Além do torque, permitem-se ultrapassagens mais ousadas emfunção da largura mínima que a moto proporciona. Para-se em qualquer lugar pormenor que seja a vaga. Pode-se até entrar em locais não permitidos aosautomóveis, desde que ao lado da moto e com ela desligada. Viajar de carro podeser mais confortável, mas a sensação de estar em liberdade e ao sabor do vento,de fato não dá para explicar nem com mil palavras. Conduzimos os carros epilotamos as motos. A fila sob o sol vai dimunuindo e chega a minha vez deentrar no país vizinho. Avisto várias cabines como se fosse um pedágio, masapenas uma funcionando. O funcionário brasileiro estava ali para cadastrar osveículos que se mantinham em fila única, exceção aos caminhões e ônibusinternacionais. Com péssima dicção e com pouca vontade para exercer seutrabalho, vai pedindo documentos e digitando tudo, sem pressa, num velhocomputador. Sentia o suor escorrendo pela espinha sendo absorvido pela roupaquando chegava na altura da cintura. Na batata da perna o mesmo acontecia. Nesseanda e para, a moto do Nairo ficou magoada e entrou em greve. Não queria maisligar. A bateria foi se esvaindo à medida em que ele tentava acionar o motor,sem sucesso. O RicardoS pôs-se a escutar se a bomba de gasolina fazia barulho. Nãoera ali o defeito. O que fazer? Chegou a hora de usar a cordinha de naylon que o Nairo trazia em suabagagem. Como a minha moto é um tratorzinho e estava mais leve do que aKawasaki do casal, propus-me a puxar e permitir que a Tiger pegasse no tranco. AMilena que não é nada boba registrou tudo em filme, para desespero do Nairo quepropunha comprar o vídeo a fim de que as imagens não caissem em mãos erradas.Rimos muito da situação e em poucos segundos a mais possante das três já estavaem ordem de marcha. Teríamos agora de passar pelos fiscais da Argentina que, aliás,foram muito simpáticos. Um casal bonito perguntou para onde ia e se os dois detrás estavam comigo. Dei o roteiro e confirmei quanto aos parceiros de viagem eapresentei a carta verde, que é o documento mais pedido pelas autoridades delá. Todos liberados, estávamos finalmente no território de los hermanos. O calor continuava a fim de derreter tudo o queencontrasse pela frente, mas nos controlamos e rumamos para Corrientes. Foz doIguaçu está distante de Corrientes cerca de 700 quilômetros. Tínhamos muitopela frente e dava para imaginar o que seria percorrer esse trecho com o calorque fazia. Hora de parar para comer algo. É interessante que quando vamos paraqualquer país leva-se um certo tempo até conseguirmos uma boa comunicação.Gestos ajudam e o portunhol impera. Paramos num vilarejo que não tinha nenhumasombra para as motos. Estacionamento defronte a um pequeno comedor, ao lado das grandes motos de policiais argentinos, queusavam TDM´s 900 da Yamaha, verde oliva, nas quais traziam a inscrição gendarmeria. Depois minha mãe me disseque esta palavra vem do francês pois lá, polícia é gendarme. Sentamo-nos à mesa de madeira numa pequena varanda doestabelecimento e pedimos o cardápio. Os três companheiros adoram carne e eutenho certa restrição. Como carne vermelha, mas só se estiver muito bem passadae sem nervos, fibras e gordura. Nesse sentido pedia sempre filé de frango queera uma comida para mim mais santa. Como se pede peito de pollo? Percebemos que a tradução em espanhol era pechuga de pollo. Pronto, nunca mais vouesquecer, até porque virou piada. O RicardoS não perdia uma só chance de nosfazer rir e a tal pechuga nosacompanhou durante os dias que se seguiram. Quando passava uma mulher bonita oRicardoS me olhava com cara de safado dizendo apenas: “pechuga....!!!” O almoço era bem servido e se pedíssemos doispratos para os quatro, sairíamos plenamente satisfeitos. Demorou muito para serservido e nesse momento vimos uma movimentação estranha no vilarejo combombeiros polícia e ambulâncias circulando em alta velocidade com luzes esirenes ligadas. Tratava-se de um acidente muito grave em que um caminhãoperdeu o controle e caiu de uma ponte. Enquanto aguardávamos a refeição veio umhomem puxar conversa e dizer que gostava muito do Brasil e que era inclusive casadocom uma brasileira. Adorava motos e viagens e foi ficando amigo a ponto decolocar sua casa à nossa disposição para quando quiséssemos passar pela pequenacidade onde residia. Não me lembro do nome da cidade, mas morava na RuaHarmonia, 900. Começamos a pagar as contas com pesos argentinos que estavam naproporção de dois para um, um real valia quase dois pesos argentinos. Levei R$500,00 nessa moeda, além de dólares depositados num cartão travellmoney , bandeira Visa, prépago. Primeiro abastecimento numposto Shell e tive de optar pela gasolina lá chamada de nafta, com as opções de93, 95 ou 97 octanas. Optei pela mais fraca e, mesmo assim, a alta octanagemdaquele combustível despencou a autonomia da minha moto. Como não é injetada esim carburada, tive de me contentar com 12 Km/litro, muito diferente dos 17 quefaz no Brasil. Como a maior parte da viagem seria em território argentino, fizas contas e vi que meu orçamento para esse item havia furado. Além disso,saímos de São Paulo com a informação de que a nafta argentina estava muito maisbarata do que no Brasil. Ao lado da bomba, constatamos que estava um pouco maiscara do que a nossa. Não tinha jeito. Absorvi o prejuízo e não me incomodei maiscom isso, já que a viagem iria me oferecer muito mais do que os 600 ou 700reais que iria gastar a mais do que o planejado. Paguei a conta com o talcartão de débito prépago e fiquei contente por ter sido aceito e sem problemas.O RicardoS até sugeriu que procurasse um mecânico que fizesse uma regulagemprópria para aquele combustível. Mas tudo na Argentina é muito difícil. Estamosmal acostumados em São Paulo, já que encontramos tudo o que queremos e semprecom várias opções de escolha. Lá é diferente e os dias seguintes confirmaramessa constatação. Além do mais, na volta ao Brasil teria de procurar outraoficina para restabelecer a regulagem original. Relaxei, fui acelerando mais,gastando mais e, ainda por cima, feliz da vida. Paramos de novo para abastecere tivemos de ficar no fim de uma fila interminável de carros e motos. Emmovimento era possível suportar o calor, mas nas paradas, era mesmo umsacrifício. Os postos YPF são estatais e a nafta um pouco mais barata, daí aexplicação das filas. Dá para perceber que o país tem uma crise de abastecimentodescomunal. As opções de bandeira são Shell, Petrobrás e YPF. Nos doisprimeiros paga-se mais pela gasolina, que nem sempre é encontrada. Muitas vezessó tem diesel ou só gás natural. Não tem como fugir das filas. Percorrer 700quilômetros nessas condições dá a clara dimensão de que o tempo necessário atéo destino final será muito maior. Nas paradas a Milena vinha com uma garrafa pet e oferecia para nos molhar e assim refrescar ainda que por poucosminutos. O RicardoS armazenava água da torneira dos postos diretamente nocapacete, como se fosse um côco, e colocava na cabeça, nos dando motivo paravárias gargalhadas. Esse cara era realmente um maluco de plantão. A viagem nãorende e faz cair por terra qualquer planejamento. Deixei de abastecer num postode uma cidadezinha que quase não aparece no mapa para fazê-lo uns 80quilômetros à frente, segundo as informações do GPS do RicardoS. O meu estavadesatualizado e só mostrava o caminho para as cidades, mas não carregava alista de postos e hotéis e ainda só da Argentina, pois não tinha o mapa doChile. Se alguém for fazer essa viagem sozinho deve atualizar o equipamento e,mesmo assim vai correr riscos. Soube depois que o posto que o GPS acusavaestava desativado, obrigando-me a voltar quarenta quilômetros entre ida e voltapara abastecer na tal cidadezinha. Os parceiros continuaram mais devagarenquanto eu voava para buscar alimento que dava vida à moto. O calor começava adar sinal de que iria se recolher e o fim da tarde estava próximo. Chegamosfinalmente em Corrientes, uma cidade portuária carente de beleza e formosura.Resolvemos andar uns quilômetros mais, por volta de 20, e chegar a Resistência,uma bela cidade de gente bonita e saudável, conhecida como cidade dasesculturas. Corrientes e Resistência são capitais de províncias argentinasequivalentes aos estados brasileiros. Corrientes é capital da província deCorrientes e Resistência da província do Chaco. Estão separadas pelo Rio Paranáque se atravessa por uma bela ponte que dá a sensação de estarmos nos EstadosUnidos ou Europa. O sol se punha à esquerda e a imponente ponte garantia umavisão sem igual, que me fez arrepiar pela primeira vez, entre os inúmerosarrepios que tive durante toda a viagem. No fim da ponte havia uma praçamoderna e cheia de gente malhando e fazendo exercícios aeróbicos nosequipamentos ali colocados pela municipalidade, com recantos ajardinados egente feliz. Namorados com suas motonetas estacionadas, pessoas fazendocaminhada, enfim, a cidade deixava transparecer felicidade e vida saudável. Nãofoi difícil encontrar o hotel Casa Mia que contava inclusive com estacionamentofechado para as motos. Cansados, tiramos as malas, alforges, bauletos e tralhaem geral e subimos aos aposentos. Para voltar e buscar mais coisas a gente seperdia dentro do minúsculo hotel. Quem idealizou aquele layout devia ter tomadotodas antes de desenhar a planta. Brinquei que era preciso além do regulamentodo hostess, um roteiro para encontrar o quarto e também para se chegar à rua.Não tinha a menor lógica e ainda estou curioso quanto à sanidade do arquiteto.Apesar de ter rodado naquele dia mais de setecentos quilômetros – e eu quarentaa mais – nas condições que relatei, preferimos ir comer alguma coisa do jeitoque estávamos, pois se fôssemos tomar banho, nos vestir para sair, certamenteisto iria comprometer o dia seguinte. Cumpre lembrar que Resistência marca oinício do Chaco que, como se sabe, tem um retão interminável de 850 quilômetrosaté Salta, situada próximo à pré-cordilheira dos Andes. O Chaco não temabsolutamente nada, apenas alguns poucos postos de nafta e muitos animais quepõem a todo instante suas vidas em risco, assim como a dos outros que alitransitam. Sentamos na mesinha de um restaurante à beira da calçada e nada dogarçom aparecer. Fazia ainda muito calor e preferimos entrar para ver se lá dentro o ambiente estava mais confortável. Pedimos um sanduíche imenso e queveio cheio de recheios e acompanhamentos. Tinha alface, picles, cebolinha, ôvo,presunto, queijo, uma espécie de assinatura com um molho não sei de que, alémde palmito, catchup e mostarda. Era realmente grande e sem dúvida daria pararepartir. Lembro de um pai que estava teclando de maneira frenética o celular eduas filhas que olhavam para o nada, sem se mexer e sem esboçar qualquer reaçãoante à indiferença do suposto genitor. Noutra mesa três senhoras da melhor idade,risonhas e bem vestidas, passavam ali alguns momentos de pura felicidade.Alimentados, fomos procurar um cajeropara trocar um pouco de dinheiro e fomos andando sem rumo pelas alegres ruas deResistência. Na praça principal havia muitas esculturas assim como uma antigafonte luminosa parecida com a que conhecia em tempos de criança em Poços deCaldas. Fomos à farmácia comprar protetor labial para o frio e eu aproveiteipara comprar um rinossoro para hidratar minhas vias aéreas que estavam um poucoressecadas, em razão do vento e da secura do ar. A Milena namorava os alfajorese sempre experimentava um diferente. De volta ao hotel, banho, posts no facebooke cama. Os banheiros da Argentina não têm box de vidro e só se encontramaquelas cortininhas de plástico, de motivo duvidoso, que tem comportamento tipooito ou oitenta. Se estão para fora, deixam molhar todo o banheiro e, se paradentro, grudam no corpo impedindo o banho. Tinha de pegar no sono, já querodamos naquele dia 700 quilômetros e, no dia seguinte, iríamos enfrentar ostais 850.
Chaco – Ruta 16
Foi a primeira vez que usei meuantipático e necessário camel back. Abastecemoscom água, pusemos gasolina nas motos e partimos para percorrer a longa ruta 16.O início do trecho foi marcado por um trânsito meio carregado, sobretudo decaminhões, o que dificultava as ultrapassagens pelo fato de ser pista simplesde mão dupla. Dava para notar o porquê do nome, já que inúmeros riozinhosestreitos e sinuosos banhavam uma grande porção de pastos que abrigavam muitoscavalos, bois e cabras. Ficavam deitados no verde como que saciados de tantocomer e beber. Garças muito brancas compunham aquele ecossistema, as quais sealimentavam de parasitas, comuns nos animais, e ainda faziam uma espécie de massagemcom seus bicos pontudos. Todos felizes. Aos poucos o trânsito foi rareando, aomesmo tempo em que diminuíam as águas que caracterizam aquela província. Entramosde fato naquele temido retão. Temido, pois se precisarmos de ajuda,provavelmente não a teremos. Rodamos muitos quilômetros sem encontrarabsolutamente ninguém. O que impressiona é a quantidade de animais,principalmente aves, à beira da estreita rodovia, ciscando sementes de capim ede outras espécies de vegetação que vestem aquela imensidão. Várias vezestínhamos de fazer verdadeiras acrobacias em cima da moto para evitar o choquecom algum passarinho que quase batia no peito, cabeça, pés ou parabrisas. Umdeles não teve a mesma sorte e acabou sendo pego em cheio pelo pé do RicardoS.Era pena para todo lado e os restos mortais ficaram presos em sua bota e partedo motor. Estávamos numa velocidade moderada, algo em torno dos 110 ou 120Km/h, quando uma cabra marrom claro, sai debaixo de uma árvore do acostamento epula na frente da minha moto, como se quisesse testar minhas reações ehabilidades. Foi uma brecada muito forte e uma guinada à esquerda, no sentidodo rabo do animal, pois geralmente, os bichos tendem a ir para frente.Raramente retornam. Os cachorros são exceção. Gostei que foi uma cabra que invadiu a estrada, pois se fosse cachorro, poderia ser pior. Pilotar naquelaregião pode dar sono e enganar a visão. Por vezes, sinceramente, não sabia se estavasubindo ou descendo. É muito louco, pois tem hora que temos a certeza de queestamos numa leve descida, mas se pensarmos que é subida, teremos essa mesmacerteza. Mas a única coisa que não provoca dúvida é de que se trata de uma retaimensa. As motos mais pesadas começaram a gastar os pneus por realizar essetrajeto repetitivo e acabaram por criar uma pequena quina, tornando-os meioquadrados, tendo de se alterar o modo de pilotar. Nada muito gritante, mas davapara sentir esse desgaste de certa forma prematuro e irregular. Às vezesencontrávamos um trator ou uma colheitadeira pelo caminho, mas logo em seguida,estávamos a sós de novo. O calor ardia, e como ardia. Não havia muito quefotografar, nem filmar. Mas tínhamos de dar uma parada para descansar. Pareceque minha moto adivinhou e logo pediu para ligar a reserva, pois a gasolina jáestava no fim. Liguei a reserva e pudemos rodar mais uns 20 quilômetros, atéque o motor apagou e parou de vez. Os companheiros logo pararam e eu fui noembalo até que não fosse mais possível o equilíbrio. Queria andar o máximo coma nafta do último abastecimento. Acabei parando um pouco longe dos amigos o querendeu algumas gozações. O Nairo gentilmente se prontificou a emprestar amangueira transparente e flexível que levava em sua bagagem. Acabou ele mesmotransferindo os cinco litros que eu levava de reserva, dando um gás a mais paraque pudéssemos seguir viagem. Momentos depois encontramos um posto de gasolinacom uma grande fila de pessoas querendo abastecer. Uns rapazes da regiãotentavam furar fila com suas pequenas motos, mas como viram que não iríamosaceitar aquela situação, desistiram e ainda foram repreendidos pelo gerente do estabelecimento.Ali deu para entender nitidamente porque suávamos tanto. O nome da localidadeera Pampa del Infierno. Estávamos ainda no início da grande meta traçada paraaquele dia. Faltava comer muita estrada para chegar em Salta, já posicionada na pré cordilheira dos Andes.As placas passavam indicando as longas distâncias até Los Frentones, Rio Muerto, Pampa de Guanacos, entre outras pequenas localidades. Tratores muitoantigos e enferrujados, dignos de museu, ajudavam a compor o cenário que dava asensação de estarmos numa terra sem lei. Era terra, poeira, pedra, calor e maisnada. As horas iam passando e os quilômetros sendo devorados na reta infinita.Aparece mais tarde uma pequena curva e isto me deixou feliz. Alguma coisa haviamudado e foram-se o sono e o tédio. Já dava para avistar as primeiras montanhasque faziam parte da cordilheira, dando o segundo e grande arrepio da viagem. Asensação de sair de casa com a própria moto e, depois de quatro dias, tendorodado um pouco mais de 2.500 quilômetros, à média de 625 por dia, poderavistar os Andes pelos seus próprios recursos, sem depender de uma companhiaaérea ou coisa do gênero, garante um raro prazer. Esse prazer foi tão grande que chegando à Salta, que leva o mesmo nome da província, a vontade era mesmode chorar de alegria. O RicardoS teve um pequeno incidente ao pegar um pequenoatalho de terra que escondia um buraco pequeno e fundo na junção com o asfalto.A roda da frente conseguiu vencer o buraco, mas a de trás não teve a mesmasorte, fazendo o conjunto desequilibrar e cair no chão em câmera lenta. AMilena se jogou para evitar que a moto caisse sobre suas pernas e, passado osusto, até brincamos que chegando a Salta ela literalmente saltou da moto. Como parabrisas cheio de bicho e cansados pela grande viagem que fizemos e aindasob o calor dos infernos, chegamos pelo alto de uma colina, que dá vista àcidade que está lá embaixo num vale, circundado por altas montanhas. Descemosrumo ao centro e encontramos uma cidade que foi colonizada pelos espanhóis apartir de 1535. A arquitetura em arcos e a grande praça central que abrigahotéis, bares, restaurantes, igreja, e sedes oficiais, revela uma cidade que édestino de muitos turistas, principalmente na alta temporada. Guardas montadosem belos cavalos de pêlo brilhante, banda tocando música sob a batuta do maestro, muita cor e gente feliz procurando por diversão entre as inúmeras atraçõesque aquele lugar incrível oferece, caracterizam um pouco aquela linda cidadeque pede pelo menos de 3 a 4 dias para bem aproveitar. O Hotel Colonial situadona praça central é muito aconchegante, antigo, bem decorado e esbanjando muitamadeira.Tem um jardim interno envidraçado, muitas pinturas decorando seuinterior e uma sacada no alto que dá visão de parte da cidade e também de umaigreja que às 6 da tarde badala seus sinos ao mesmo tempo em que holofotesdestacam seus contornos. A praça central parece um calçadão, mas os carrosadentram sem resistência dos agentes de trânsito. Parece que lá tudo épermitido. Começa uma fina chuva que se vai rapidamente. Pego o celular econecto à rede wifi para contar para a Lúcia o quanto eu estava feliz. Na horaque ela atende começo a chorar compulsivamente, sem possibilidade alguma defalar o que queria. Passada a emoção, pude mostrar a ela ao vivo o encanto dacidade, através da câmera e o aplicativo Skype.Depois do banho e roupas limpas, saímos para jantar. Lembro que enquanto procurávamosrestaurante, encontramos um grande cachorro preto cheio de verrugas. Daí aMilena deduziu que estava com chiclé grudado na cara, costas, patas e tudomais. Alguém deve achar graça em grudar chiclé nos cachorros, como pudemosobservar outros mesmo em outras cidades, na mesma situação. Definimos o lugarque iríamos cenar e a escolha damaioria foi por filé de lhama. Achei esquisito (em português) pedir aquilo, masao experimentar, me arrependi de ter pedido apenas salada de tomate com queijofeito de leite de cabra. A carne tinha uma textura macia, era clara e muito bemcozida, com batatas assadas acompanhando. Estava realmente saboroso, literalmenteexquisito (agora em espanhol). Um cantante tocava violão e alegrava as pessoasreunidas nos diversos bares da praça com sua música regional. Um senhorzinho meofereceu folhas de coca a quem pedi desconto. Daí a Milena me perguntou por queeu tinha pedido desconto se nas lojas eu não o fazia. Achei que, como turista,poderia estar pedindo um pouco a mais, mas de qualquer modo não precisava mesmotentar pagar menos, pois o valor do envelope era de fato pequeno. Folha de cocanão é droga. Droga é o produto da masceração de folha de coca depois deadicionar produtos químicos a alta temperatura. Dizem que é preciso umatonelada de folha de coca para a transformação em 100 gramas de cocaína. Chamarfolha de coca de droga é uma ofensa àquele pessoal. Aliás, o produto é muitousado para se evitar o puno que é justamente o mal das aturas. Como iríamossubir a mais de 4800 metros no dia seguinte, comprei a coca daquele velhosenhor. De volta para o hotel, já nem lembrávamos mais do dia extenuante quefoi por termos atravessado o terrível e temido Chaco Argentino.
Travessia da Cordilheira dos Andes
Uau, Ricardo, que aventura!!! SP/Foz numa tacada só! Fiz em duas partes e já achei cansativo... Parabéns! Que baita disposição!
ResponderExcluirFico feliz por vc e pela Lúcia, tanto pela maravilhosa viagem, como pelo encontro com a Karla. Que bom!
Sigam bem e com Deus.
Abraços do
Vitor